Quando falta o ar by Paulo Couto

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A vida começa no útero materno, num momento que precede um modesto contributo paterno, e aí se desenvolve ao longo de nove meses, numa água de vida envolta numa suave bolsa protetora (e como o meu segundo filho nasceu dentro da bolsa, que eu recolhi nas minhas mãos, podia despender aqui muito tempo com detalhes sobre o suave toque na bolsa cheia de liquido).

É neste ambiente único que o feto cresce e se desenvolve: o bebé forma-se na água, recebendo oxigénio, esse veneno mortal, através do cordão umbilical.

Antes de continuar é importante avisar os mais distraídos que “oxidar” provém de “oxigénio”, porque é o, lá está, “oxigénio”, que provoca a “oxidação”. Ora, na velha casa dos meus avós, eu cresci a ver caleiras e portões que teimavam em oxidar, e que obrigavam, por isso, o meu avô a trabalhar.

Na década de oitenta, o meu pai tinha um Renault 5 que, também ele, oxidou bastante e por todo lado, tendo acabado na sucata depois do último verão em que aproveitamos o arejamento adicional que os enormes buracos no tejadilho já proporcionavam. Quando era criança, a minha mãe dava-me uma maçã e insistia para que eu a comesse antes de ela oxidar, aplicando-se o mesmo às bananas, à pêras e aos marmelos na hora de fazer a marmelada. Escapam os limões e as laranjas, vá agora saber-se porque razão ou magia negra.

Regressando ao embrião, se no ventre o contacto com oxigénio é mínimo, já no nascimento dão-se dois milagres: o milagre da vida e o milagre do envelhecimento.

Quando nascemos, os pulmões enchem-se de oxigénio, e todo o corpo é também envolto nesse elemento químico maléfico que começa, de imediato, o processo de envelhecimento. Uma desgraça pegada.

E porque fui lembrar-me disto?

Duas razões.

Primeiro porque a minha filha mais velha foi este ano internada com sérias dificuldades respiratórias. O problema de base foi diagnosticado, alergias, e consequentemente debelado, ou pelo menos controlado, mas é uma dor no coração ver a dificuldade de respirar de um filho que, derivado a um estreitamento das vias respiratórias, tem dificuldade em fazer chegar todo o ar que precisa aos pulmões. E quem diz ar, diz oxigénio.

A segunda razão sou eu, que já por cá ando há 35 anos, em contacto constante com o oxigénio e todos os malefícios daí resultantes, tão visíveis nos portões dos meus avós e no Renault 5 do meu pai. É que o meu corpo tem tido muito contacto com esse elemento, resultado também de um estilo de vida saudável e muitas caminhadas pela montanha, o que claramente tem prejudicado a minha saúde.

Só assim se explica as incontáveis dores cervicais e lombares, a dificuldade que tenho em mexer o pescoço ou caminhar com ambos os filhos no colo. E já nem vou falar da pele enrugada e olheiras omnipresentes e omnipotentes, que se não são maiores é porque felizmente há cada vez mais dióxido de carbono no ar o que vai ajudando à minha saúde pela ausência de oxigénio.

Concluindo, quero só alertar Sr. Trump e todos os politicos e decisores que insistem em ignorar as consequências visíveis da poluição atmosférica. O seu contributo tem sido claramente importante para o meu corpo oxidar mais lentamente, e por esse lado agradeço. Mas este mundo não é só meu, e o oxigénio que a mim, e a ele que já não é novo, tanto incomoda, vai fazendo alguma falta à minha filha, que prefere não passar muito tempo no hospital a respirar por uma garrafa. Ela precisa do ar senhores, façam um esforço por o manter limpo.

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Contabilista precisa-se by Paulo Couto

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Sim, eu sei que é abusivo aproveitar o blog de uma amiga para vir publicitar as minhas pendências pessoais, mas notem, eu já tenho contabilista, não é como se estivesse desesperado com o IRS de 2016, que já entreguei mas no qual as finanças encontraram divergências, e fosse o caso de o meu contabilista não dar conta do recado tenho ainda muitos amigos capazes de preencher um modelo 3 ou mesmo o 22, entenda-se, mas nenhum que consiga resolver o meu maior problema de contas pois falta-lhes a especialização. Já procurei nas páginas amarelas, que, pasmo geral, ainda existem na internet, já telefonei para a Ordem e até para a autoridade tributária, mas continuo na mesma.

O meu problema é simples: preciso de alguém que faça a contabilidade das horas, pode converter em dias, que eu levo a adormecer os meus filhos, e que no dia do juízo final, o meu entenda-se, interceda por mim junto de quem é de direito para que esse mesmo tempo, praticamente inútil em que, não por minha opção, não pude fazer nada nem mesmo dormir, seja creditado de novo no meu livro (em pequeno aprendi que o nosso futuro já está todo escrito por isso depreendo que exista um livro, bem grande) e eu seja enviado de novo para baixo para gozar o tempo que me é devido, sim para baixo pois com tanta privação de sono e horas de embalo nas costas posso fazer qualquer coisa no futuro que o meu lugar no céu está certamente assegurado.

Sei que estamos na silly season, mas isto não é uma questão menor. Toda as semanas são incontáveis as horas que eu despendo com as minhas duas crianças. Sei que ao ter participado na sua concepção eu, de forma mais ou menos imposta e mais ou menos implícita, aceitei uma série de termos, cláusulas e obrigações, às quais estou vinculado até à morte, e não me arrependo. Atenção, eu não quero deixar de adormecer os meus filhos, aliás, acho um verdadeiro milagre que um bebé de 6 meses adormeça no meu colo só porque sim, porque está no meu colo e é meu filho. Neil Amstrong foi à lua. O super-homem consegue voar pelo céu. O Hulk fica forte e verde e eu adormeço crianças!

Não é todos, calma, apenas os meus. É escusado virem agora com os vossos rebentos todos para a minha porta, nem vou abrir, eles não me conhecem, o meu cheiro será estranho, por isso duvido que se deixem adormecer na segurança dos meus braços. Mas não é incrível que um ser tão pequeno, que ainda mal se habituou ao sol e à chuva, não sabe falar e só com dificuldade leva uma colher à boca, se deixe adormecer nos nossos braços de um quase estranho? Por isso calma, não quero renunciar a este privilégio, mas às vezes gostava de ser menos bafejado pela bonança, 15 minutos de embalo são mais do que suficientes, não preciso de beneficiar desta benesse durante mais do que uma hora e várias vezes por noite. Mas, enfim, estou resignado ao facto de que não posso mudar esta triste sina. Não podendo eu mudar isto, há por aí alguém que possa ir anotando as minhas horas de serviço e interceda para que depois sejam devidamente creditadas em tempo para tarefas mais profanas? Obrigado.

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As palavras por dizer by Paulo Couto

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Vão ao médico. Frequentem a consulta de planeamento familiar todas as semanas. Usem preservativo, dispositivo intrauterino, o anel, o adesivo e o implante. Espermicida inseticida e óleo de fígado de bacalhau. Laqueiem as trompas e façam uma vasectomia. Deixem crescer todos os pelos do corpo, não usem desodorizante, fio dentário ou pasta dentífrica. Não tomem banho se preciso for! Abstenham-se raios. Cuidem da vossa saúde, não tenham filhos, por favor.

Agora olha para cima, volta atrás e lê tudo do inicio. Posso trata-lo por tu? Chegados aqui, vou assumir que sim, somos amigos.

O que ninguém nos diz antes de sermos pais, é que depois de ter um filho viveremos para sempre no medo de o perder. E não é metáfora, não me refiro a perder um bebé que cresce e depois é do mundo, nada disso, perder perder, ver sofrer ou até morrer. Porque depois da euforia do nascimento nasce essa angustia, incerteza amarga, será que o vou deixar cair, estou a pegar bem, ainda parto alguma coisa, e se ele sufoca a dormir, a morte súbita é um risco, e no carro, vou mudar de carro para um mais seguro, e comprar uma cadeirinha com triplo airbag e atmosfera protetora. Porque agora tudo pode acontecer, e ele é tão frágil, que o único objetivo das nossas vidas é protegê-lo, com a nossa própria vida se for preciso. E não estou a exagerar.

E não acontece nada, ou acontece tudo. Nasce prematuro e os pais acordam de imediato para um limbo de muitas semanas de dúvidas, alimentadas por esperanças. Nasce bem e saudável mas um simples vírus, uma poeira de merda de tamanho microscópico, atira a vida do recém nascido para um novelo de indecisões, onde os pais se embrenham até à ponta do último fio, incapazes e impotentes, jurando dar a vida pelo ser que acabaram de conhecer. Correndo bem tudo se esquece, mas fica o medo, esse fica sempre.

Eles crescem. De bebés se tornam crianças, as saudades que sentimos do primeiro estado, e à medida que crescem qualquer percalço é um apocalipse. Da gripe à varicela, dos cinco pontos na cabeça à perna partida, do choro por perder um amigo à asma asfixiante. Ver um filho sofrer é um desastre de proporções inimagináveis. É uma dor na alma, um sobressalto constante. Um filho longe e um telefone a tocar é pólvora ao lado de fogo. E nada nos prepara para isto, nem as imagens da Síria vista no jornal da noite.

Por isso deixo o conselho, que não é ensinamento, mas sim aviso. Na preparação para o parto ninguém nos ensina a sofrer, ninguém nos avisa que vai ser assim para sempre, em todos os dias da nossa vida, ter filhos é ter medo de os perder.

Ainda aqui estás, posso continuar a tratar-te por tu? Vou dizer-te o que os teus outros amigos calaram. Não estás disponível para sofrer, todos os dias, pelos filhos? Volta ao inicio deste texto. Lê todo o primeiro parágrafo, repetidas vezes, até ao fim.

Há sangue suor e lágrimas no caminho da felicidade.

(Este texto é escrito ao abrigo do antigo e do novo acordo ortográfico. Num país que criou muitos mestiços eu gosto de misturas)

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Paisagens sal a Sul by Paulo Couto

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Primeiro foi a paisagem. O castelo único e as casas brancas que recebem quem chega. Logo depois a natureza, impoluta. As aves, o sapal, as salinas e a sensação de liberdade nas planícies sem fim. A seguir foi tudo o resto. Não saberia dizer o que me prendeu a Castro Marim, o que sempre me faz voltar, mas sei bem o que levei: o sal, a alma de Castro Marim.

 

Dizer que está presente todos os dias na minha cozinha, na minha boca, é redutor. Porque não foi só o sal que eu carreguei para casa, essas pequenas pedras de cristal branco, foram as mãos, a água e o sol, o que sobra da mistura da água com o sol, o trabalho daqueles que, todos os dias, se levantam com a manhã para as rotinas na salina, nas horas em que o calor ainda perdoa, recolhendo a flor, bonito nome, e mantendo as salinas imaculadas, prefiro impolutas, para preservar a pureza de um produto tão natural quanto a água, não fosse o sal só a ausência desta.

Ao longo de muitas semanas habituei-me a estas rotinas. Acordar cedo, ouvir as aves, sentir o vento forte da primeira manhã, acompanhar o trabalho de homens e mulheres até o calor apertar. E depois as horas da tarde, quando o sol começa a cair no firmamento e as sombras se alongam nas salinas. Homens que parecem gigantes. Homens e mulheres que o são.

 

Por isso, quando a Filomena Sintra me convidou para o projeto, eu não sabia todo o peso que iria carregar, desconhecia as histórias que iria ouvir e retratar em imagens. Ainda não tinha visto os rostos sulcados pelo sol, os pequenos montes de tesouros brancos espalhados ao longo de tão grande área. Acima de tudo, literalmente, descobri uma nova perspectiva, uma forma diferente de ver as salinas. Uma visão que os próprios salineiros desconhecem, e que provavelmente só os pássaros comentavam entre si. Conseguir mostrar isso aos Castro-Marinenses, achar nos seus olhos a emoção dessa descoberta, foi talvez a maior recompensa e alegria.

 

Por isso tenho de agradecer à Filomena Sintra a ideia e o convite, ela é o verdadeiro autor moral deste trabalho, ao Carlos Afonso, fotografo apaixonado que me ajudou a descobrir os recantos e a luz, e aos salineiros, todos sem excepção, que me receberam de braços aberto e com quem aprendi o que são as salinas, a flor e o sal. Este trabalho são eles.

Texto escrito para acompanhar a exposição "Paisagens do sal a Sul", patente de 24 de Junho a 15 de Agosto na Casa do Sal, em Castro Marim. O texto foi também publicado no livro editado com o mesmo título da exposição. 

Mimo by Paulo Couto

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É meu. É meu meu meu. Mordo-o quando me apetece. A sério que sim. Nas bochechas, no pescoço, nas lindas roscas dos pulsos. É meu e ninguém tem nada com isso. Se ando com ele ao colo? Claro. Não o incomodo a perguntar se sabe caminhar, diz-me a experiência científica, feita de observação, que por mais que eu insista ele não se vai levantar. Mordo-o quanto baste, dou-lhe colo sempre que pede ou a mim me faz falta, sendo poucos os minutos que sobram desta equação. O mais novo tem três meses a irmã vai fazer quatro anos. Aplico as mesmas regras com pouca distinção, só mesmo o colo é que, por questões físicas, não suporto por tanto tempo. Mas até me esforço bastante.

Serão mimados todos os dias, cada dia mais, com carinho e atenção (que em dias de maior cansaço falta, e depois é preciso acumular para ressarcir as crianças dos cuidados indevidamente perdidos, porque um filho não se contenta com alguma atenção, quer toda e é devida).

E brincar. Num mundo perfeito eu não voltava a trabalhar para poder passar os dias em brincadeiras com eles. Provavelmente ficava cansado ao fim de algumas horas, e a clamar por algum tempo de trabalho. Mas essa experiência é necessária, porque todos os dias pais e mães tem a experiência oposta: vinte e quatro horas de trabalhos e uma noite de sono, se a matemática o permitisse, para sonhar com horas de brincadeira com os filhos (a matemática e a razão nada querem com as relações de amor, e só isso explica como conseguem alguns pais fazer tanto com tão pouco).

É urgente amar, acarinhar e mimar. Precisamos de crianças livres, amadas e mimadas, muito mimadas. Eu quero que os meus filhos sejam mimados, porque é que a palavra adquiriu uma conotação negativa? Precisamos de adultos mimados e amados, chega de macambúzios de semblante carregado de sinais de indiferença. O meu filho não precisa de aprender a chorar, precisa de saber que quando ele precisar, e seja qual for a razão, eu estarei lá para o pegar ao colo, tenha ele três meses ou trinta anos.

Charles Manson, Jack the Ripper, Adolf Hitler, Josef Stalin, Lucky Luciano, Jesse James, Timothy McVeigh ou Aníbal Cavaco Silva, já li biografias de todos e em nenhuma consta uma frase sobre o excesso de mimo e carinho recebidos na infância.

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